QUEIJO DO MARAJÓ: TRADIÇÃO, HISTÓRIA E RESISTÊNCIA DE CONHECIMENTOS E DE MODOS DE PRODUÇÃO FAMILIAR

Por Elcio Costa do Nascimento*

Foto acima: Búfalo, animal símbolo da Ilha do Marajó. Acervo pessoal do autor.

A modernização das sociedades baseou-se em um processo homogeneizador de costumes, buscando criar um padrão comum de práticas e hábitos de consumo, oferecendo tanto facilidades na vida diária, quanto uma proposta de qualidade de vida e status social baseado no consumo de produtos e alimentos industrializados. Entretanto, o consumo exagerado desses produtos com elevado nível calórico, gorduras e açucares tem afetado o padrão alimentar atual, ocasionando preocupações relacionadas à obesidade e a doenças cardiovasculares. Paralelamente, casos de contaminação de alimentos, preocupam os consumidores em relação à segurança dos alimentos e, contribuem na construção de novos padrões de consumo, que visam alimentos livres de contaminantes, mais naturais e procedentes de um sistema socialmente justo, em oposição ao industrializado.

Neste contexto de revalorização dos produtos artesanais rurais, a produção de queijo do Marajó, no Pará, tem sido fortalecida, aumentando sua procura e possibilitando a continuidade de sua produção. O queijo de búfala da Ilha de Marajó é considerado produto fruto de sistema familiar de produção, assegurado por meio da transmissão do conhecimento entre as gerações, com forte ligação com o território no qual é produzido e comercializado.

O modo de produção preserva aspectos tradicionais no que diz respeito à criação dos animais e no processamento do queijo. Este último, em sua maioria, produzido em pequenas queijarias próximas as propriedades (alguns produzidos nas cozinhas das casas), utilizando equipamentos simples, com pouco ou nenhuma automação, e ferramentas rústicas, como: a peneira de Jacitara (planta local), a colher de pau, mesas de madeira e papel manteiga na embalagem do produto. Embora considerados inadequados pelos órgãos de fiscalização, são considerados essenciais na garantia da qualidade do queijo. Portanto, seu uso é defendido pelos produtores que afirmam que a mudança afetaria sabor, textura e a qualidade final do produto, demonstrando modo de produção baseado no conhecimento tradicional e de movimento em preservá-lo e, assim, garantir as características que diferenciam o queijo do Marajó.

A tradição na produção e nos conhecimentos relacionados a essa prática são preservados pelos guardiões da região. Os guardiões são produtores que detêm tanto o conhecimento produtivo quanto elevada reputação na comunidade, adquiridos ao longo dos anos de experiência e prática na produção do queijo do Marajó, colaborando na conservação e no desenvolvimento de inovações e adaptações necessárias para melhorar a qualidade do produto final. Adaptações necessárias devido à intensificação da fiscalização sanitária na década de 1990, acarretando melhorias nas práticas de processamento do leite, da produção do queijo e na comercialização do produto. Entretanto, a fiscalização baseada em uma legislação de 1950, que defini normas para as etapas de produção, processamento e comercialização e exigi grandes estruturas e equipamentos, não leva em consideração o porte da produção e aspectos econômicos, sociais e culturais da pequena produção, incapacitando-a de se adequar e obter as liberações necessárias.

 Queijaria típica da região da Ilha do Marajó.  Acervo pessoal do autor.

Apesar da revalorização do rural ter elevado o debate sobre a legalização e reconhecimento de formas de produção tradicional e as novas legislações reconhecerem a importância da produção artesanal, as mesmas pouco discutem uma flexibilização de critérios que facilitariam a atuação e a participação do pequeno produtor no mercado formal. Realidade refletida nos números de queijarias registradas pelo órgão estadual de inspeção sanitária (ADEPARÁ). Das 39 unidades produtoras de queijo levantadas, apenas sete possuíam o registro do órgão, das quais apenas duas são queijarias de pequenos produtores.

Porém, vale destacar a importância da complexa rede social desenvolvida e mantida entre produtores e consumidores do queijo marajoara, especialmente diante de determinadas preferências tanto por produtos – considerados de melhor sabor, consistência e paladar -, quanto por produtores – devido às técnicas utilizadas e a uma qualidade apreciada pelos consumidores. Rede social que possibilita a formação de redes locais de comercialização, que em épocas de intensificação da fiscalização e apreensão de produtos, permite que os pequenos produtores continuem produzindo e comercializando sua produção, por meio do desenvolvimento de laços de confiança, na qualidade e na certeza de estarem consumindo produto que não gera riscos à saúde.

Entretanto, esse debate entre produção artesanal e fiscalização sanitária está longe de finalizada, considerando a recente aprovação do Decreto nº 9.918/2019, que reconhece as características únicas e o diferencial do produto artesanal e institui o selo ARTE, que identificará produtos com ou sem qualidade. Entretanto clarifica o significado de “Boas práticas de produção” e como o processo de fiscalização será conduzido, podendo, ou não, reproduzir ações atuais que impossibilitam a produção artesanal.

 

Elcio Costa do Nascimento – Zootecnista, Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável/NEAF/UFPA, Doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: elcioncosta@gmail.com

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